sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Entrevista sobre teatro

De tempos em tempos, anuncia-se com todo estardalhaço a morte do teatro. Assim foi quando surgiu o cinema, o rádio, a televisão e agora, mais uma vez, é a internet a mídia que vai enterrar o teatro de vez. O que ocorre, na realidade, é que o teatro está cada vez mais vivo, principalmente entre a geração mais jovem. O que acontecia alguns anos atrás, quando o teatro era apenas um caminho para a televisão, já não acontece mais com tanta frequência. Tanto autores quanto atores, incluindo os diversos grupos teatrais, trabalham e vivem exclusivamente do teatro. Entre esses autores, está o dramaturgo Joeli Pimentel. Da mesma geração de Mário Bortolotto, Pimentel faz um teatro reflexivo e vigoroso. O mais importante não é mais fazer do teatro um laboratório de experimentação. É muito maior a preocupação em tentar comunicar sentimentos, que muitas vezes são incomunicáveis. Nascido no Paraná, de origem proletária, Joeli não é um autor exclusivamente político, mas seus personagens vivem situações limites e até mesmo absurdas. Autor do premiado Comprei um Tresoitão e fui Brincar com Deus, Joeli tem várias peças em seu currículo. Em 2003, montou o próprio grupo teatral — A Cia. dos Desencontrários — junto com a atriz (e esposa) Danielle Ávila. Joeli também já escreveu um livro de contos e prepara-se para filmar seu primeiro longa-metragem. Com toda essa atividade, Joeli Pimentel é a prova de que o teatro continua mais vivo do que nunca e muito bem de saúde. Evoé, Joeli! [Paulo Mohykovski]
Paulo Mohykovski - O teatro do século vinte apontou para a incomunicabilidade do indivíduo, a tal ponto, que muitas peças parecem quase incompreensíveis, como as de Samuel Beckett. Neste século, parece que há uma busca pela comunicação, mesmo quando enfocam personagens solitários ou banidos da sociedade. Como você encara esse tema, o da comunicação ou da falta dela, nas suas peças?


Joeli Pimentel - Acho que nas minhas peças os personagens estão sempre tentando. Tentando se comunicar, tentando fazer, tentando mudar, e duma certa forma eles sempre conseguem, nem que for morrendo como na peça Comprei um Tresoitão e fui Brincar com Deus.
Hoje a comunicação tá tão fácil, tudo está tão exposto, tudo tão liberado, que parece que as pessoas não têm tempo (nem saco) pra pensar, pra estudar, pra meditar, se envolver seriamente com algo ou com alguém, parece que tudo isso virou uma bobagem.
Então tudo ficou superficial. Acho que estamos numa fase em que todo mundo pode falar — a comunicação está fácil — mas não tem O QUE falar. Parafraseando o jornalista da Gazeta Mercantil, Juan Velásquez, que escreveu sobre o Tresoitão no Jornal do Comércio (ele mata no ninho esse assunto): "Quando uma trupe de teatro se junta, um dos primeiros obstáculos para uma boa montagem é vencer o desafio de encontrar o que se quer dizer".
Acho que isso é um retrato do momento em que vivemos. Hoje em dia as pessoas são mais instrumentalizadas e menos preparadas para a vida, cada vez mais social e menos capaz de lidar com a sociedade. Quem vê minhas peças fica intrigado, porque parece que a solução do problema é tão fácil e às vezes até é, mas os personagens que estão vivendo aquilo não conseguem resolver. No Perfuro (meu último texto ainda inédito) temos dois personagens com personalidades bem marcadas, fortes e que defendem suas ideias o tempo todo, ou seja, solucionamos o problema da comunicação. Agora, chegar num denominador comum e resolver a situação é que é difícil. Temos que falar menos e agir mais. Nas minhas peças sempre tem uma resolução, no caso da Perfuro é a união para um bem maior.

PM – Você e o Mário Bortolotto são representantes de um novo teatro, tanto que já trabalharam juntos. Quais as semelhanças e diferenças entre vocês dois como autores?

JP - Somos parecidos no universo retratado de nossas obras, o de dar voz a personagens outsiders, que normalmente ficariam fora da dramaturgia no Brasil. A diferença está na maneira de compor esses tipos. Os personagens que ele cria brigam com o mundo em volta e não arredam o pé do que acreditam, são irônicos. Os meus personagens já são guiados pelo acaso, estão à deriva nas intempéries da vida, sofrem por ser românticos num meio violento e normalmente enlouquecem. Acho que sou um dramaturgo de visão piedosa para com os seres humanos. Acho que a diferença está aí.


PM - Uma das características que une você ao Bortolotto é uma forte carga autobiográfica nas suas peças. Nunca os autores expuseram tanto as suas vidas. De onde nasceu esa necessidade de expor a própria vida?

JP - Todos os seres humanos passam ou sofrem dos mesmos dilemas. Quando utilizamos nossas vidas, acredito que ocorre uma identificação maior com o público. Falamos do microcosmo para o macro. Do nosso quintal para as esquinas do mundo. Eu acho que todo autor retrata o que está passando, o que está vivendo: o que pensa é sua reflexão do mundo. Acho que é pra isso que escrevemos. Mesmo que seja um autor criando personagens femininas, elas são um pouco do que acreditamos, de como vemos um tipo de mulher. Acho que hoje em dia os autores podem "assumir" que essa é sua vida e o que eles acreditam; o que não dava pra acontecer alguns anos atrás, porque senão eram presos ou tidos como loucos. Os meus textos são mais perguntas do que respostas sobre a vida. Tudo o que escrevo está cheio de dilemas físicos ou existenciais, que temos que passar enquanto seres vivos.

PM - Os artistas geralmente são oriundos de classe média alta, pois podem pagar cursos de teatro, comprar livros, frequentar peças, etc. A sua biografia é bem diferente, já que você vem de uma classe economicamente mais desfavorecida. O que isso influenciou no seu teatro?

JP - Sou um beatnik, um viajante, meio louco, meio alguma coisa e meio bosta nenhuma. Todo artista sofre influência do meio em que foi criado e eu não poderia fugir à regra. As dificuldades econômicas me mostraram outro mundo, o mundo dos excluídos, dos operários, dos boias-frias (trabalhadores rurais). Até os dezessete anos fui um caipira, alienado, um branquelo morador de favela, uma bola chutada sem reclamar, um desses covardes católicos que esperava a vinda do Messias para salvar seu rabo. Depois disso, o teatro e a literatura e o cinema me municiaram para enfrentar o mundo. Escrevo sobre os personagens que vivem na periferia do mundo. Mesmo agora, com uma vida mais confortável, não mudei nada: continuo arrancando a superfície da pele do mundo, para mostrar a merda que é seu interior. Eu não saberia escrever sobre a classe média, sobre suas frivolidades, suas comédias sem graça.

PM - Nos anos 80, toda a geração beat começou a ser publicada e um autor como Bukowski, que não é um beatnik de carteirinha, se tornou popular no Brasil. Muitos jovens autores se deixaram influenciar por essa geração. Ao mesmo tempo nossa literatura afogou-se em cervejas e drogas. O quanto isso foi favorável e o quanto foi prejudicial aos novos autores?

JP - Se a pessoa consegue ler Bukowski — ou qualquer um da geração beat — e só enxergar que eles são uns bêbados vagabundos, então não entendeu nada. O mais importante é que essa geração mostrou outro caminho para os jovens escritores, uma maneira diferente de escrita, que se comunicava com as ruas. Não vejo nada de prejudicial, até porque são poucos os escritores de teatro que têm ou tiveram um estilo de vida beatnik. Já na literatura temos um pouco mais.

PM - Tennessee Williams foi um dramaturgo que começou a sua carreira retratando tipos problemáticos, marginalizados, mas só alcançou o sucesso, de fato, com um drama familiar. Por que os autores preferem retratar tipos marginais, quando a família é uma instituição tão forte no Brasil? Por que não a retratam nem que seja pra criticá-la como fez Nelson Rodrigues?

JP - Drama de família é visto muito em novela ou em comédia de classe média, ou drama adolescente. Nelson Rodrigues foi tão montado e lido e estudado que acabou "saturando" todo mundo. Também, montar uma peça com mais de três personagens de forma independente se torna inviável. Como manter um elenco grande só dependendo da bilheteria? Impossível. Mas já estou algum tempo pensando em escrever um texto sobre a família, mesmo que não monte. Acho que agora já estou preparado para essa empreitada, vou ser pai.

PM - Diferentemente dos autores europeus, os autores brasileiros contemporâneos quando retratam uma situação-limite ou algum personagem desesperado, nunca abrem mão do humor, nem que seja um humor negro. Como é o humor nas suas peças?

JP - Uma vez, presenciei um acidente de trânsito, o motorista e a passageira estavam inconsoláveis, o carro estava lastimável, eles tinham alguns machucados superficiais pelo corpo, nada grave. Passado algum tempo, estavam completamente relaxados, rindo, fazendo piada da sua desgraça. Isso faz parte do ser humano. O humor em minhas peças surge naturalmente, devido ao desenho dramático e principalmente desse evento que me marcou.

PM - Essa geração de novos autores parece que não está interessada em mudar as formas do teatro, como nos anos 1960, em que havia uma preocupação em mudar o espaço cênico, do palco italiano para espaços não-convencionais, peças com maior predominância do visual que do texto, etc. Como você lida com essas questões?

JP - Já fiz teatro de arena, semi-arena, italiano convencional, não convencional, em garagem, em uma rua na Espanha, Igreja, praças, dentro de um ônibus, galpão, até num Castelo do século XII, em Portugal. Tem muita peça aqui em São Paulo, que se passa em locais bem diferentes do que o palco italiano. Tudo já foi feito, testado, inventado. Eu particularmente prefiro o palco italiano ou o semi-arena. Gosto de deixar espaço para criar a magia do teatro e a caixa preta é fundamental. O teatro tem que ser verbal. Imagem é bom para a linguagem do cinema, que tem a câmera para se aproximar do rosto do ator. Acho que não adianta estar num lugar maravilhoso, ou num cenário do caralho, se a peça for chata, se a peça não tocar o público.

PM - Nelson Rodrigues escrevia muito rápido, inclusive escreveu Vestido de Noiva em três dias e se culpava por isso, pois esta aparente rapidez podia ser vista como superficialidade. Qual é o seu ritmo de escrita? Você escreve num jato só ou segue um roteiro previamente elaborado?

JP - Antes eu escrevia em três dias... uma semana, no máximo, em dois meses uma peça nova. Hoje reescrevo muito. Estou levando meses para terminar um texto. Nesse último, já estou trabalhando há mais de um ano. Isso não quer dizer nada. Pode ser que numa sentada uma peça seja maravilhosa e outra, de elaboração mais longa, seja uma bosta. O que acontece é que com o tempo a gente vai ficando mais seletista, mais detalhista. Acredito que por isso eu demore mais para terminar um texto. Pesquiso muito a vida do personagem, para não escrever o mesmo personagem numa história diferente. Escrever é difícil, é um trabalho duro, leva muito tempo para se descobrir qual é a ideia principal escondida no texto. E quase sempre, temos que eliminar a primeira ideia, que não passa de um clichê já mostrado milhões de vezes.

PM - Pra terminar: você olha os seus personagens, mesmo os mais marginais e loucos, com um olhar de generosidade (lembra, inclusive, John Steinbeck, que tinha o mesmo olhar). Agora que você vai ser pai, esse olhar vai se tornar mais generoso?

JP - Cara, eu tenho uma piedade miserável da vida que meus personagens levam. Agora que vou ser pai, pelo contrário, minha visão está mudando. O filme que vou lançar em breve — Às vezes o céu é azul — já reflete isso. Meus personagens antes só apanhavam, agora batem e até matam, para proteger sua prole. Acho que estou ficando adepto do código das famílias mafiosas da Sicilia. Não sei se isso vai permanecer como regra, mas agora é o que está acontecendo na minha escrita. Estou mais interessado na ética e nas leis praticadas, tanto pelos excluídos, como pelos marginais violentos do crime organizado, que se defendem como podem nesse mundo hipócrita e corrupto em que vivemos.

dezembro, 2010


Paulo Mohylovski (São Paulo/SP, 1962). Redator, escreve para diversos sites. Vive em São Paulo.

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